segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Artigo da Revista Pangea

Vieira de Mello no mundo de Hobbes
Um dia antes de iniciar a sua missão fatal no Iraque, Sergio Vieira de Mello escreveu: “A preponderância militar dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha não nos deve levar a pensar que a estabilidade internacional possa ser assegurada pela força. Se quisermos que o sistema internacional se baseie em algo mais do que a força ou o poder, os Estados terão de regressar à instituição que criaram: as Nações Unidas.” (O Estado de S. Paulo, 1/6/2003).
O diplomata, que corporificou o “espírito na ONU”, expressava a crença num sistema internacional apoiado sobre valores consensuais. A idéia de uma “comunidade das nações” tem uma longa história. As suas raízes encontram-se no pensamento de Hugo Grotius que, no início do século XVII, elaborou a noção de um “contrato moral” que vincularia as nações pelos laços da justiça. O pensamento de Grotius não parou jamais de ecoar, atrás do ruído das guerras. Uma das suas expressões mais célebres foi a proposta dos “Quatorze Pontos”, do presidente americano Woodrow Wilson, que sintetizava a utopia de uma paz sem vencedores, no final da Primeira Guerra Mundial.
Thomas Hobbes, alguns anos depois de Grotius, explicou que o sistema internacional é o cenário da “guerra de todos contra todos”, no qual os Estados, por não estarem subordinados a nenhum poder superior, vivem “na situação e atitude dos gladiadores, com as armas assestadas, cada um de olhos fixos no outro”. Os idealistas sonharam com o estabelecimento de um “governo mundial” que prenderia os Estados na redoma do “contrato moral”. As duas grandes guerras do século XX atualizaram esse sonho, que se coagulou no Pacto da Liga das Nações (1919) e na Carta da ONU (1945).
Mas o “governo mundial” baseado na justiça não existe: o que existe é o poder dos Estados e a política de poder. O Pacto da Liga das Nações fundava as relações internacionais “na justiça e na honra”. De fato, a Liga funcionou como instrumento da “paz dos vencedores” e afundou devido à ausência dos Estados Unidos, a grande potência encapsulada no isolacionismo. A Carta das Nações Unidas inspirou-se na mesma filosofia do Pacto da Liga e o seu preâmbulo prometia que a força só voltaria a ser usada na defesa do interesse comum. Ao contrário da Liga, a ONU revelou-se duradoura, mas não porque tenha sido capaz de conferir vida ao sonho do “governo mundial”.
A vitalidade da ONU decorreu, paradoxalmente, da sua adaptação funcional à política de poder da Guerra Fria. O equilíbrio bipolar e o duopólio nuclear encontraram expressão jurídica no direito de veto das resoluções do Conselho de Segurança. O espectro intolerável da guerra total conferiu ao Conselho de Segurança a função de palco de confrontação e negociação entre as superpotências.
O fim da Guerra Fria dissolveu o equilíbrio bipolar e propiciou a formulação de algumas grandes deliberações consensuais no Conselho de Segurança. Depois da Guerra do Golfo de 1991, forças de paz das Nações Unidas foram deslocadas para inúmeros focos de conflito, dos Bálcãs à África, do Timor Leste ao Afeganistão. Então, a ONU adquiriu a aparência de um “governo mundial” e Vieira de Mello celebrizou-se como “construtor de nações”. No fundo, como registrou o perspicaz embaixador da administração Clinton nas Nações Unidas, Richard Holbrooke, num artigo para o Washington Post, “a ONU serve no Iraque – como na Bósnia, Kosovo e Afeganistão – aos interesses americanos a longo prazo”.
Há, contudo, uma diferença essencial. Na antiga Iugoslávia e na Ásia Central, a ONU recebeu poderes amplos de manutenção da paz e reconstrução nacional, na seqüência de intervenções militares dirigidas pelos Estados Unidos mas legitimadas pelo Conselho de Segurança. No Iraque, ao contrário, a missão da ONU tem atribuições marginais, pois a intervenção militar foi deflagrada contra a posição da maioria do Conselho de Segurança e os Estados Unidos desempenham a função de potência ocupante. Essa circunstância especial é, aliás, a moldura do atentado que vitimou Vieira de Mello.
No Timor Leste, entre 1999 e 2002, as Nações Unidas ergueram, das ruínas da guerra, a “primeira nova nação do século XXI”, na definição de Holbrooke. Aquele episódio representou o zênite da carreira do brasileiro “construtor de nações” e, também, um poderoso alento para a crença num “governo mundial”. Mas a Doutrina Bush secou o lago das ilusões. Os neoconservadores republicanos, que sempre se opuseram atavicamente à ONU, assumiram o controle da política externa americana. No diapasão unilateralista da “guerra ao terror”, Washington passou a enxergar o Conselho de Segurança – onde franceses, russos e chineses dispõem do direito de veto – como um estorvo à estratégia imperial da “Nova Roma”. O “governo mundial” de Bush e Rumsfeld é a Casa Branca.
Apesar dos alertas que enviou sobre a vulnerabilidade da missão em Bagdá, Vieira de Mello não queria que o seu pessoal circulasse em carros blindados ou se escondesse atrás das tropas de ocupação, pois esperava que os iraquianos traçassem uma linha mental separando a ONU dos Estados Unidos. Há duas vítimas políticas do atentado às instalações da ONU em Bagdá. Uma é Vieira de Mello e a outra, que ele simbolizou, é a crença no “governo mundial” fundado num “contrato moral” entre as nações. Agora, ao lado de cada funcionário da ONU em Bagdá, estarão veículos militares e soldados das tropas ocupantes.

Demétrio Magnoli - 31/08/2003.